18 Fev
Artigos Setpa % Schaefer
Direito comercial

18/02/2017

por Por Marçal Garay Bresciani

 

Com o passar das últimas décadas e tendo em vista os acontecimentos sócio-políticos havidos na ordem mundial, é possível afirmar que, dentro da visão do Estado contemporâneo, o processo mais do que nunca assumiu uma condição de instrumentalidade, servindo à Constituição como forma de propagação dos preceitos e princípios constitucionais.

Em virtude disso, alguns de seus princípios vêm sendo elevados ao posto das garantias e direitos fundamentais, devido a sua relevância e correlação com o ordenamento constitucional. Todavia, convém fazer um breve escorço sobre a questão.

Nos estados liberais burgueses vigentes nos séculos XVIII e XIX, o que se apresentava era uma visão individualista dos direitos, decorrente do sistema do laissez-faire. Porém, à medida que estas sociedades passaram a sofrer alterações de tamanho e complexidade, conseqüentemente o conceito de direitos humanos passou a sofrer também uma enorme transformação.

Isto porque as sociedades, com o já referido aumento de tamanho e complexidade, deram origem a ações e relações com caráter muito mais coletivo do que aquele caráter individualista que até então imperava. Sendo assim, “as sociedades modernas deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove”(1), passando a reconhecer também os diretos sociais e econômicos.

Quando o direito à liberdade(2) passou a ser alcançado apenas por uma minoria burguesa, procedeu-se uma transformação radical em seu conceito, para que através de uma perspectiva de justiça social, o direito à liberdade passasse a refletir o afastamento da opressão não só política, mas também econômica e social. Deste modo, partindo de uma nova ótica de justiça social, os direitos fundamentais começaram a apresentar “uma finalidade individual e uma finalidade coletiva”(3).

Diante desta nova perspectiva, teve início à inclusão dos direitos fundamentais nas constituições, o que proporcionou a transformação de alguns princípios filosóficos em normas jurídicas. Ou seja, passou-se de um conceito jusnaturalista (conceito filosófico) para um conceito positivista (jurídico)(4).

Portanto, direitos que anteriormente estavam apenas no plano filosófico, dependendo da convicção de cada indivíduo, ganharam o status de norma positiva ao serem incluídos nos textos constitucionais. Outrossim, ao serem incluídos nos textos constitucionais, assumiram uma posição de direito fundamental perante a sociedade, por expressarem os valores que esta contém.

No Estado Contemporâneo, o significado e a dimensão dos direitos fundamentais passaram a resultar da própria ordem constitucional. Igualmente, passaram a resultar da maneira pela qual a sociedade contemporânea interpreta o seu conteúdo(5). E como veremos mais adiante, isto tem influência direta na moderna processualística.

O processo, como instrumento posto à disposição da sociedade, naturalmente reflete os ideais de uma determinada época ou momento histórico. Em face disso, é possível dizer que o processo é caracterizado por uma enorme carga axiológica, que tem origem na realidade política, social e econômica de um dado momento histórico.

Devido ao seu caráter instrumental e axiológico, tem-se como natural que o processo guarde correspondência com a ordem constitucional, acompanhando inclusive suas mutações(6). Segundo a lição de Cândido Dinamarco, “o processo acompanha as opções políticas do constituinte, as grandes linhas ideológicas abrigadas sob o pálio constitucional”(7).

Para Liebman, “o estudo dos institutos do processo, se é realizado ignorando ou negligenciando a ligação com os outros ramos do direito e em particular com o direito constitucional, torna-se um tedioso e estéril cômputo de formalidades e de termos; ele adquire, ao contrário, o seu verdadeiro significado e se enriquece de razões diversamente importantes quando é entendido como o estudo do aparato indispensável de garantias e de procedimentos, estabelecido para a defesa dos direitos fundamentais do homem.”(8).

Destarte, o processo dos dias atuais deve espelhar e resguardar os valores individuais e coletivos que a ordem constitucional mantém em vigor. Deve em si mesmo garantir a legalidade preconizada pela ordem constitucional do Estado contemporâneo, mostrando estar a serviço desta e em consonância com esta.

A fim de melhor atingir tais objetivos, tem sido feita uma divisão metodológica dos princípios constitucionais do processo. Assim, surgiram os denominados direito constitucional processual e direito processual constitucional, que, salienta-se, não são ramos novos do direito processual, mas apenas divisão metodológica.

O direito constitucional processual engloba os princípios do processo propriamente ditos, v.g., o devido processo legal, enquanto o direito processual constitucional está ligado à chamada jurisdição constitucional, que envolve os instrumentos previstos na constituição que visam a proteção dos seus respectivos preceitos, v.g., o controle da constitucionalidade. Aqui, trataremos somente do direito constitucional processual.

Como bem ensina Cândido Dinamarco, “A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo de assegurar a conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios que descendem da própria ordem constitucional”(9). Mais uma vez se constata que o processo é um instrumento que reflete o regime democrático, com as conotações de liberdade, igualdade e participação, dentro de um sistema de legalidade que é colocado pela ordem constitucional contemporânea.

Dentre os princípios do processo, têm recebido especial atenção nos textos constitucionais o princípio do devido processo legal, do acesso à justiça e do contraditório(10), por exemplo, relativos à área do processo civil. No tocante ao processo penal, se destacam os princípios da proibição de provas ilícitas e da ampla defesa, entre outros.

Obviamente que estes princípios nem sempre irão encontrar a mesma redação ou terminologia nas constituições, tampouco estarão todos elencados no rol dos direitos fundamentais. Mas o certo é que o seu valor será basicamente o mesmo, desde que se trate de uma ordem constitucional que sustente o regime democrático.

REFERÊNCIAS

(1) CAPPELLETTI, Mauro. In “Acesso à justiça”. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Ed. Fabris, 1988, p. 10.
(2) À época, o direito à liberdade deixou de refletir a igualdade entre os cidadãos, visto que passou a ser privilégio da classe mais forte economicamente.
(3) CRUZ, Paulo Márcio. In “Fundamentos do direito constitucional”. Curitiba, Ed. Juruá, 2001, p. 136.
(4) CRUZ, Paulo Márcio. Ob. Cit., p. 135.
(5) DINAMARCO, Cândido Rangel. In “A instrumentalidade do processo”. São Paulo, Ed. Malheiros, 7a Ed., 1999, p. 25.
(6) DINAMARCO. Ob Cit., p. 30.
(7) DINAMARCO. Ob Cit., p. 30.
(8) LIEBMAN, Enrico Tullio. Apud MARINONI, Luiz Guilherme. In “Novas linhas do processo civil” São Paulo, 1996, Malheiros, p. 18, nota 2.
(9) DINAMARCO. Ob Cit., p. 25.
(10) Também denominado princípio da participação.

 

topo